Falar de pai é assunto delicado.
Não no sentido do melindre, mas da emoção.
Fico pensando qual a minha
memória mais antiga com o meu...
... 1967, eu com três anos, e ele
me levantando para ver, pelo vidro do berçário, minha prima Adriana que tinha
nascido há algumas horas.
Docão, como carinhosamente o
chamo, foi exímio jogador de bola e dividiu o campo com dois capitães da
Seleção Brasileira: Mauro e Bellini. Ele se orgulha disso, eu também. Abdicou
do sonho por pressão familiar e virou funcionário público. Ele se orgulha
disso, eu também, apesar de sentir certo pesar em sabe-lo frustrado.
Perdeu o pai aos 4 anos, mas
guarda dele lembranças tão profundas, que me causam arrepios. Todos os carros
que comprou foram azuis. Eu nunca entendia, até saber que era a cor do Ford 29
que meu avô Pedro tinha. Dia desses, soube que já em 1934, o dono do Fordinho
era assinante do O Estadão, aí entendi porque meu pai assina o jornal desde que
me conheço por gente, inclusive na fase, em que eu e meu irmão, queríamos muito
que ele assinasse o Jornal da Tarde.
Tenho ótimas histórias para
contar. Histórias que ele sempre fez questão de construir conosco:
A caixa com meia dúzia de Nha
Bentas, sagradas, trazidas uma vez por mês, no dia do pagamento. Ele, bancário
durante a semana, atrás de um balcão de padaria aos sábados e domingos, para
conseguir um dinheiro extra, provavelmente para realizar algum sonho familiar. É,
nunca nada só pra ele. Sempre o coletivo.
Nossas férias em São Vicente – a
praia é melhor que Santos, ele dizia – e depois no Guarujá – agora tá melhor
que São Vicente, né filha?
Nossos carnavais, na Recreativa
em Pontal. Dançávamos muito, bebíamos whisky, nos divertíamos a valer. Meu
baile de debutantes, ele, orgulhoso, desfilando comigo no mesmo clube. Ah,
ensaiamos a valsa em casa, algumas vezes, para evitarmos o mico. Deu certo!
Dono de um nome que detesta,
Aparecido, era motivo de piada consentida, junto aos meus colegas de colégio:
- Quando o Aparecido aparece,
nóis desaparece!! E ele achava graça.
Não estava quando fui crismada,
viajou a trabalho – meio que um prêmio de reconhecimento ao excelente trabalho
que exercia no Banco do Estado – por quase todo o nordeste. Chegou carregado de
presentes.
Detestava o primeiro namorado
sério que tive, mas nunca abriu a boca para fazer campanha contra. No dia que
contei que não era mais virgem e ele na sua sabedoria impressionante disse:-
- “E você achou mesmo, que eu
achasse que você fosse, aos 24 anos e 2 de namoro?”
No dia que contei que tinha
decidido não me casar mais com o tal cara que ele detestava, deu um sorrisão e
disse:
- “Eu tinha esperanças de que
você fosse acordar”
A alegria
quando tirou uma Brasília no consórcio, teoricamente para mim e minha mãe. A
cor duvidosa, escolhida para agradar a mim:
- Filha,
você implica com meus carros azuis, então, como esse é você que vai usar,
escolhi um “beginho”. Oh, Meldels, pensei, deve ter escolhido no escuro. Era
verde abacate, com leite, tá certo, mas ainda assim feio!
Sempre
sábio, cheio de experiências de vida e uma generosidade ímpar, nunca negou um
ombro, os ouvidos e um conselho. Nunca negou ajuda, dinheiro, comida.
Sempre
ajudou as irmãs, os sobrinhos, alguns amigos, genros, noras, desconhecidos.
Quando
soube que eu ainda amava um namorado da adolescência, teve história pra contar
e juntos choramos os amores impossíveis de nossas vidas. Consegui seguir em
frente graças a ele, que me mostrou que outras relações sempre são possíveis.
Nós dois
cuidando do meu casamento, lá no Esporte Clube Banespa em São Paulo e depois de
braços dados entrando pelo salão – eu não quis casar na igreja e isso não foi,
em momento algum, um problema - ele segurando pra não chorar e eu também.
O
nascimento da Marcella e o choro desmedido de alegria, a notícia da gravidez
dos meus gêmeos e o choro dele de emoção.
A frase
certeira, diante das minhas queixas sobre o casamento:
- “Chris,
as pessoas só fazem com a gente, aquilo que a gente permite que elas façam”.
Nunca mais me esqueci disso.
Meu pai
cuidou a vida toda de mim. Carinho quando tive hepatite, paciência quando tive
Síndrome do Pânico e coragem quando tive câncer.
É a
referência masculina dos meus filhos, que infelizmente perderam o pai há 6
anos. Para o meu pai, a perda do ex genro pesou. Ele o amava como a um filho,
mesmo depois de estarmos separados há 11 anos. Pesou tanto que meses depois
teve um AVC que o deixou debilitado por um tempo.
Docão nos
deu mais alguns sustos, teve endocardite, teve outro AVC, mas hoje, aos 84, ele
ainda cuida de mim, meus irmãos, sobrinhos e netos.
Difícil
pensar nele sem me emocionar, difícil saber como será seguir quando ele não
estiver mais aqui. Mas nem quero pensar nisso agora.
O importante
é que em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, desejo que ele seja sempre
feliz.