Naquele primeiro de Janeiro, ele
acordou cedo. Antes de se levantar, chamou a mulher.
- Levanta, Adélia. Faz o café e
arruma os meninos.
Sentado “no trono”, pensava com
satisfação na vitória daquele que seria o salvador da pátria.
- Agora sim, o Brasil vai pra
frente. Ordem e Progresso. Acabamos com esses comunistas. Acabamos que esse
Lula. Nunca mais vamos ver aquela Dilma. Estamos salvos!
Na cozinha, Adélia fazia o café
enquanto as crianças corriam ao seu redor, gritando animadas.
- Mãeeeeeee, a gente pode ligar a
televisão????
- Pode, filho! Gersonnn, anda
logo!!! Vai começar.
Já na sala, todos acomodados no
sofá. Hino Nacional, mão no peito, lágrimas escorrendo pelo rosto, ele pensava
naquela pistola Taurus TH 380 full size que tinha visto na internet.
- Amanhã mesmo eu compro. Minha
família vai ficar segura. Passou do portão e eu não conheço? Tiro!!! Encheu meu
saco no trânsito?? Tiro!!!
Adélia, no canto do sofá, olhava
com alívio para aquele homem, normalmente tão mal humorado e agressivo.
- Hoje vai ser um bom dia. Ele
vai melhorar! Ele vai melhorar!!! E com
esperança sorriu.
Na TV, um general e um capitão.
Ternos impecáveis, gestos militares, mulheres ao lado, compondo o cenário. Uma
multidão gritando com a empolgação dos
fanáticos.
- Mitoooooo!!!!! Mitoooooo!!!!!
O Capitão então faz um gesto para
que se calem e diz olhando para a câmera:
- Você que não votou em mim, é
bom já ir se acostumando, porque as coisas vão mudar, Ok? Decreto que a partir
de agora o congresso está fechado. Não
serve pra nada!!! Prá nada!!!!
- Não existe mais casamento gay.
Vamô pará com essa viadagem. O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva
um coro ele muda o comportamento dele. Tá certo???
- Vamos acabar com esse papinho
furado de facilitar a vida dessas minorias. Nada de cotas. Preto tem os mesmos
direitos dos brancos. Eles não querem igualdade, então? Nada de cotas, ok??
- A partir de hoje, mulheres não votam mais. É
um corretivo pra aprenderem a se comportar.
Adélia olha pra Gerson com olhos
de pavor e ele retruca:
- É bem feito pra essas
vagabundas que foram pra rua com aquele papinho de #ele não!! Agora vão ter o
que merece.
- Mas eu não fui, marido. Eu
votei nele.
- Não interessa. Mulher é tudo
igual. Tô loco pra chegar amanhã no escritório e mandar meia dúzia embora.
Na TV, o discurso continua.
- E quem desobedecer minhas
regras vai sofrer com isso, OK?? Não vou
cometer o mesmo erro de 64. Agora vou torturar
e matar !!!!
A plateia delirava.
- Mitooooo!!! Mitoooooo!!!!!!
Gerson levanta, vai ao lado da
TV, faz pose e manda Adélia fotografar. Quer postar no Facebook. Quer esfregar
na cara dos amigos esquerdopatas que não votaram no mito. Quer mostrar pra todo
mundo quem é que manda agora. Sente-se
legitimado!! Não precisa mais esconder seus preconceitos e sua intolerância.
Agora sua vida será perfeita.
Pega o celular, acessa a internet,
entra no aplicativo e se depara com a mensagem:
- Rede Social banida em todo
território Nacional.
Tenta outra e outra e mais uma e
em todas, a mensagem é a mesma.
Entra nos sites de notícia, um após o outro.
Todos com a mesma mensagem:
- Proibido o acesso em todo
território Nacional.
Muda o canal da TV. Em todas as
emissoras a mesma imagem do mito, gesto de arma com as mãos, o grito da massa.
Olha pra Adélia frustrado e se dá
conta que informação agora, só quando o Júnior chegar da escola, com o caderno
da aula de OSPB.