Dizem que os piscianos têm mania de carregar as culpas do
mundo e como tal, devo admitir: é verdade, mas não somos os únicos.
Carregamos culpas desde pequenos, quando recebemos cobranças
dos pais e professores:
- Menina! Você
precisa ser mais comportada, mais aplicada, mais limpinha, menos gulosa, mais
estudiosa, mais obediente e pintar dentro da linha.
Diante da impossibilidade da perfeição, nessa fase, me
lembro de ir dormir com 100% de mim se achando a pior menina do mundo.
Na adolescência a coisa ficou pior:
Precisava ser mais
magra, mais bonita - apesar de usar aparelho, de usar óculos e de ter espinhas
– causadas claro, pela minha insistência em comer chocolate e a "falta de
cuidado" em não lavar o rosto com o sabonete certo 950 vezes ao dia.
Precisava ser a primeira da classe e o mais cruel de tudo: Essencial
que eu fosse meiga e delicada.
Fase de jogar minha cara espinhenta no travesseiro com 195%
de mim tendo a certeza de que era a pior
mocinha do mundo.
O tempo passou, virei quase adulta
e outros dramas surgiram: Não passei na USP nem no concurso Banco do
Brasil. Fiz faculdade de propaganda – e
olha o absurdo: Não aparecia na televisão!
Adorava a noite, adorava os amigos, adorava cantar, bebia moderadamente,
fumava moderadamente.
Tinha um namorado gordo e careca, que não queria saber de
casar.
- Nossa!! Como assim?
- Namora, viaja com o namorado e não vai casar!
- Mas não é mais virgem?
- Deu pra esse cara feio?
- Fim dos tempos!
Pra piorar, na cabeça do meu pai inconformado, eu trabalhava
no Mappin e ele "não tinha pagado a faculdade para eu acabar
balconista."
Cabeça mergulhada no travesseiro e 80% de mim jurava mser
uma vadia, deflorada e solteira, que não conseguia agradar ninguém no mundo; 10%
sentiam uma raiva danada de não poder ser feliz assim e o os 10% restantes
ficavam buscando uma forma de explicar pro "Seu" Doca que o lugar que
eu trabalhava era a ALMAP, não o Mappin!!
Aí, eu me casei! Porque um dia, quase todo mundo casa! Cobranças
se multiplicaram como a poeira em cima da minha cômoda: Sua casa não é tão bem
decorada- como a daquela amiga rica que casou ano passado e tem 15 empregados -
nem tão arrumada como a da sua tia - que tem "toc". Sua comida não é
boa como a da sua sogra e sua roupa tá mal e porcamente lavada e passada.
Momento em que pousava a cabeça no travesseiro – que diziam
empoeirado e contaminado de ácaros – e enquanto 70% de mim se sentia a pior
dona de casa do mundo, os outros 30%
pensavam em tudo o que tinha pra fazer no dia seguinte.
Vieram os filhos !!! Muito Plasil e Rivotril para lidar com os
"palpitólogos" de plantão. Eles – os filhos - não eram tão educados
como deveriam. Eu era uma mãe ausente,
negligente, irresponsável. Eles, os filhos,
não andavam arrumadinhos como os outros priminhos, filhos daquelas
primas que passaram a viver a vida em função de marido e filhos.
- Fulana é uma graça, né gente? Os menininhos dela, tãooo
educadinhos.
- Mas ela é muito responsável, nossa! Vive pra eles.
- Nossa, que diferença da Beltrana, né? Um absurdo Ela tem empregada, trabalha fora.
Folgada, viu?
A noite, apoiava a cabeça no travesseiro e 50% de mim ficava
culpada, 25% com ódio mortal das críticas e 25% com uma pena danada daquelas
coitadas que abdicaram dos sonhos e da vida pra lavar cueca e limpar bunda de
criança.
Acabei me separando e claro, resolvi continuar com a vida. Ahh !! Que dureza. Ouvia dioturnamente a
ladainha:
- Você sai demais;
- Namora demais;
- Gasta demais;
- Viaja demais, terceiriza demais;
- Deixa a casa na mão de empregada, deixa os filhos nas mãos
de babá.
Inconformada, de madrugada, no travesseiro, 40% do que me
restava de consciência lúcida sentia culpa, os outros 60% pensavam em como
curar a ressaca para voltar ao trabalho no dia seguinte.
Aliás, no trabalho, não era diferente. Na cabeça dos chefes,
eu sempre fazia menos relatórios do que
a outra gerente, menos visitas do que aquele contato que não sabia fazer mais
nada da vida a não ser vender reclame na "rádia". Faturava menos que
aquele colega, mal amado, que nunca queria voltar pra casa por conta da mulher
megera. Não limpava direito a mesa, ou a sala, ou o escritório. Usava muito o
telefone para assuntos considerados particular - mesmo que significasse dizer para
a enfermeira da escola do meu filho quantas gotas de Tylenol ele estava
acostumado a tomar - Usava decote de menos , tratava muito bem meus
subordinados e não conseguia ser hipócrita diante das peladonas sem caráter que
conseguiam vaga como diretora a certa altura e flacidez da vida.
Nessa altura,
45% eram culpa, 20% eram pena da falta de perspectiva dos
companheiros medíocres de trabalho e os outros 35% mandavam, mentalmente, todo
mundo a merda.
No geral, a dita sociedade nos impõe algumas posturas chatas
e politicamente corretas além da conta. Temos
que fazer doação, que reciclar o lixo, ser voluntário e partidário, não podemos
gostar de novela, nem do BBB. Precisamos perdoar os que nos feriram, e dar a
outra face.
Nesses casos, hoje em dia, deito a cabeça no travesseiro e
5% de mim sentem culpa – pelo lixo reciclado. 45% lamentam as cobranças e 50%
sentem um misto de raiva e pena das pessoas que cagam essas regras.
E como se não bastassem os problemas reais, o mundo virtual
nos bombardeia de cobranças através dos malditos
pedidos de compartilhamento pelo autismo, pela síndrome de Down, pela paz
mundial, pela tia Cotinha que está internada com Alzheimer e nem sabe que você
existe mais.
Amigos, que nunca vimos mais gordos – ou mais magros – nos propõem
brincadeirinhas ridículas pelo câncer de mama, pelo dia do trabalho, pela
Dorinha, que perdeu os dentes em mais uma briga com o cretino do marido.
As beatas hi- tech com aquelas orações - sempre muito
poderosas e infalíveis - que te abençoam até a página dois, desde que você
repasse para 4.678 pessoas. Caso não o faça, seu mundo vai acabar em barranco,
seu dinheiro vai aparecer na cueca do Sarney e seu Santo protetor será Murphy.
Finalmente, diante dessas situações, posso afirmar que deito
meu rosto – com espinha ou não – no travesseiro - empoeirado ou não e 100% de
mim sentem uma culpa danada de não ter colhido a tempo as plantações da minha
FarmVille.