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Blog de histórias reais e de ficção.
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Qualquer semelhança com histórias ou comportamentos reais poderá ter sido mera coincidência. Ou não!



sexta-feira, 13 de maio de 2011

A Voz da Escuridão




Trancada no quarto, deitada de bruços na cama desarrumada, rosto banhado em lágrimas, Neusa tenta se convencer de que fez a escolha certa.  Pouco se importa que as pessoas a vejam como tola e ingênua. Não teria mantido o casamento por 20 anos se admitisse enxergar tudo com clareza.
        Não ouve mais o movimento do lado de fora.
- Já devem ter ido embora. Eu mesma iria se pudesse.
      A sala ainda cheira a vela e flores. No centro, o tapete azul mostra a marca dos pés que mantiveram o caixão de madeira de lei e dos suportes de coroas decoradas com palavras de consolo em fitas brilhantes que o cercaram durante o velório.
      Num canto, sentado sozinho, Homero, amigo inseparável. Olhar perdido, coração despedaçado. A imagem da viúva debruçada sobre o corpo de Leônidas no caixão, soluçando de dor está materializada em sua mente. Inconformado pensa em voz alta:
     - Morrer assim tão cedo foi uma traição. Ontem mesmo estávamos todos no sítio festejando sei lá o que. E quem é que precisava de motivo pra juntar os irmãos, sobrinhos, amigos para um churrasco e muita cerveja?
      Poucos ainda circulam pela casa recolhendo copos, colocando os móveis no lugar. Na cozinha, cochichos e comentários compõem  o cenário.
- Todo mundo sabe que a Neusa era louca por esse homem. Mas será possível que não via?
- Ah, acho que não. Não me lembro de ouvir ela reclamando do bar da Dona Zezé, das pescarias... E ó!  O Leônidas ficava no Rio Pardo dias sem dar notícias.
- Então! Ai quando dá de cara com a verdade sai correndo e se tranca no quarto?
- Mas também não precisava ser assim, né? Um choque coitada. Um choque!
      Neusa enxuga o rosto, levanta da cama e segue em direção ao espelho pendurado sobre a penteadeira. Senta-se na banqueta diante dele e surpresa reconhece a imagem refletida. Há quanto tempo não via o próprio rosto? A resposta foi imediata: O que viu durante anos foi a mulher que abdicou dos sonhos pra viver ao lado de Leônidas o homem que amava. Essa morreu há alguns minutos, na sala de estar, diante do caixão.
      O marido era um amante insaciável que a tomava nos braços todas as noites com beijos ardentes e promessas de dias melhores. Nunca cometeu grosseria, não esqueceu data importante. O homem das pequenas surpresas. Flores, bombons, mimos. Pai generoso, amigo fiel.
      Lembrou-se do dia anterior quando ele saiu no meio do churrasco sem avisar.
- Homero, Leônidas te falou onde foi?
- Não, Neusa. Deve ter ido até a cidade comprar cigarros. Volta logo com certeza.
 A festa acabou e ele não apareceu. Tarde da noite Neusa e os filhos, já em casa, aflitos ligavam para amigos e parentes em vão.     
      O telefone tocou às 7hs da manhã e o coração de Neusa parou de bater por décimos de segundos.
- Dona Neusa, é o Zé, aqui do Sítio. Ó, a notícia não é boa não. Acabei de vê o carro do Seu Leônidas aqui no meio da plantação de cana. Ele tá esquisito lá dentro. Acho bom mandar alguém aqui.
Um Infarto fulminante impediu Leônidas de completar 50 anos.
      Pensa nas palavras desconexas ditas em meio às lágrimas durante o velório
- Ah Leônidas, eu aceito te perder porque é Deus quem está te levando. Nós juramos! Só a morte me separaria de você.
Admite para si mesma que não quis ver os olhares constrangidos que os amigos trocaram enquanto ela chorava devastada pela dor e nem a mulher que parou na porta vestida de preto, véu na cabeça, lenço preso a mão que acarinhou o rosto de Leônidas. Só ouviu quando ela disse:
- Meu amor, como será minha vida sem você?
      Neusa, diante da imagem no espelho lembra como congelou e sentiu o coração parar pela segunda vez naquele dia. Não tinha se preparado para isso. Não sabe como ainda reuniu forças, chamou os filhos e pediu que o enterro fosse realizado imediatamente. E foi assim que acabou trancada no quarto, deitada de bruços na cama desarrumada, rosto banhado em lágrimas, sem ouvir mais nada.
Homero bate na porta quer se explicar. Ela não ouve.
A família e amigos insistem, forçam a fechadura, chamam por ela. Precisam confessar que sempre souberam de tudo. Precisam pedir perdão. Ela não escuta.
O filho grita, clama por atenção, quer contar sobre o flagrante de anos atrás num restaurante fino da capital. Silêncio.
      Lá dentro perdida nas lembranças Neusa conclui que, viver acreditando que “o que os olhos não vêem o coração não sente” não tinha sido exatamente uma escolha. Foi a sua única opção. Assim não viu as manchas de batom nem os fios de cabelo escuros e longos no banco do carro. Não viu o bilhete no bolso do paletó nem as mensagens no celular.  Tão pouco sentiu o perfume adocicado na camisa que ela mesma lavava e passava com tanto carinho. Foi uma época em que ela só ouvia. Ouvia as desculpas, as declarações de amor e as promessas.
     Hoje a voz na escuridão a fez ver a verdade e logo um rosto conhecido ressurgiu no espelho clamando por atenção.
Em nome dos novos tempos Neusa decidi: Vai atender.

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